domingo, 20 de novembro de 2011

A neblina portuguesa...

Gabriel Magalhães - professor de literatura na UBI e em Espanha 
Publicado no Jornal La Vanguardia de Barcelona - Fevereiro 2011

Em Portugal, a neblina faz parte da verdade. No nosso país, aquilo que é real é sempre um pouco nebuloso. Por alguma razão, Fernando Pessoa acreditava, em 1934, que D Sebastião, o Rei que desapareceu em 1578, iria regressar numa manhã de nevoeiro.
Pode parecer uma parvoíce, mas a história está cheia de regressos. De fantasmas que voltam. Vejamos o que aconteceu em Portugal e na Europa nas últimas quatro décadas, assumindo como perspectiva a neblina lusitana.
Portugal democratizou-se depois da revolução de 1974. Quando o país aderiu à actual União Europeia, em 1986 os portugueses convenceram-se de que o sistema democrático ia ser uma aristocracia para toda a gente. Soa bem, não é? Todos ricos, todos muito importantes. Por conseguinte, os organismos do estado começaram a crescer para criar um cenário de um país moderno e desenvolvido.
Pensar como no século XVII.
E aí entra a neblina portuguesa. Dos túmulos das suas velhas capelas senhoriais, ergueram-se os falecidos duques e marqueses lusitanos, que passaram a ocupar cargos no serviço público.
Invadiram também as maiores empresas. Alguns novos executivos e funcionários do Estado sentiam se altos aristocratas desse Portugal imperial e europeu. Vivia-se à grande trabalhava-se com moderação. O que aconteceu em Portugal repetiu-se em muitos outros países do Velho Continente, aonde foi vingando a ideia de que o projecto da Europa assentava num sistema aristocrático para toda a população. Foi assim que se deu o regresso inconsciente a uma mentalidade senhorial de outros tempos. Entramos no século XXI a pensar como se pensava no século XVII.
Gastar porque sim!
Parece estranho mas reflictam um pouco. O cidadão relaciona-se com o Estado acumulando benefícios, subsídios, privilégios – exactamente como fazia a velha nobreza, que enriquecia com as mercês dos reis absolutos. Por outro lado, cada pessoa faz, na sua vida pessoal, mais ou menos aquilo que lhe apetece, um pouco à maneira do que faziam os fidalgos de outrora.
A nossa relação também se parece muito com a dos aristocratas decadentes: gastamos porque sim, porque somos grandes. E, se for preciso endividarmo-nos, endividamo-nos e assinamos seja o que for. O delirante esbanjamento europeu dos últimos anos e as dívidas monumentais de alguns países só podem ser explicados pelo apogeu desta nova mentalidade senhorial. Uma sociedade com uma visão burguesa já teria feito contas há muito tempo. Nas ultimas décadas, quase todos nós europeus, nos divertimos numa festa que teve por palco um palácio de Versalhes fantasmagórico, que se encontrava perdido na neblina do passado e que apareceu no presente, exactamente como, um dia, há de voltar o rei D. Sebastião.
Professores como preceptores sem poder.
De repente, tudo faz sentido: aborrecida de delfins reais, que tantas vezes vemos nos rostos dos nossos filhos; o facto de, em muitos países, os professores se terem transformado em preceptores quase sem poder sobre os nobres rebentos dos cidadãos. E também é possível compreender melhor as grandes misérias europeias actuais. Porque quando surge uma casta que se julga superior, essa elite começa a duvidar do estatuto de seres humanos dos outros, sobretudo se através disso conseguir ter uma vida mais cómoda.
Há alguns séculos, os negros, os escravos e os servos da gleba não eram humanos. Na aristocrática Europa do presente foi decretada a desumanização do embrião e do feto.
Grandes mas sem ideias.
Uma casta que se considera insuperável costuma limitar-se a repetir os postulados da sua grandeza: bem-estar, desenvolvimento sustentável e pouco mais. É por isso que faltam ideias na Europa. E a produtividade baixa, a capacidade de reacção e inovação reduz-se, porque ficamos amarrados no leito da nossa grandeza.
Como é evidente, outras zonas do mundo foram-se dando conta desta situação e, enquanto vivíamos convencidos da nossa superioridade, surgiu uma oligarquia mundial constituída por subtis políticos chineses, emires escondidos nos seus desertos, potentados latino-americanos e alguns ocidentais perspicazes, que fazem negócios no mundo inteiro.
Encostaram-nos às cordas e emprestaram-nos dinheiro, exactamente como, em finais do século XVIII, a burguesia tinha encurralado a aristocracia, e lhe emprestava fundos, para acabar de vez com ela.
Não há neblinas só em Portugal. Também as há na Europa. Desse mundo brumoso ergueu-se o paradigma de Versalhes e, o paradigma mais antigo do castelo feudal, habitado por grupos de cidadãos por vezes egoístas.
Vãos, fúteis e decadentes.
Portanto, retrocedemos, e muito, nas ultimas décadas. Talvez isto tenha acontecido mais no sul da Europa, talvez mais em algumas classes sociais que noutras. Mas na generalidade somos vãos, fúteis e decadentes.
E a solução consiste em cada um tomar de assalto a Bastilha de si mesmo e transformar-se noutra coisa. Voltarmos a ser clara e humildemente pessoas – essa é a saída no longo prazo.

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